Stolpersteine: a arte de não deixar esquecer o passado


Você está andando distraído por uma das ruas da Alemanha e de repente dá de cara com uma dessas placas fixadas no chão, com nomes e datas nela inscritos, então anônimos para você.

Para quem não sabe, essas placas, em alemão Stolpersteine ou "pedras-obstáculo" (stolpern = tropeçar, Stein = pedra), são colocadas na calçada à frente da casa onde moravam as vítimas do holocausto ou no último lugar que foram vistas pela última vez. Em sua memória.

A iniciativa, criada pelo artista plástico alemão Gunter Demnig, pode ser conferida neste artigo da Wikipedia, mas gostaria de tomá-la apenas como exemplo para falar de outra coisa - ou justamente a falta de atitudes como essas na sociedade brasileira para nos dar uma chacoalhada de vez em quando sobre episódios igualmente condenáveis de nossa história que, infelizmente, continuam relegados ao esquecimento ou cujo reconhecimento é relativizado, como a escravidão e a ditadura.

Mas a Alemanha "não se deixa esquecer". Um dos motivos para Demnig instalar as placas no mundo lá fora em vez de um museu ou memorial é que esses espaços podem ser simplesmente evitados ou ocasionalmente visitados, sem proporcionar a carga de lembrança que, em tese, demandam (como demonstrado aqui).

Já me deparei com as Stolpersteine quando menos esperava: saindo do supermercado, chegando em casa, no caminho para a balada... a verdade é não houve uma vez sequer que, depois do encontro inesperado, as barbaridades do nazismo e, por que aquela placa estava ali, não tenham cruzado meus pensamentos por alguns segundos.

É um efeito momentâneo, confesso, mas recorrente: estive de norte a sul neste país e vi exemplares dessas "pedras" por toda parte. Em outras palavras: elas não me deixam esquecer. Acredito que todo e qualquer cidadão que saibam da sua razão de ser, também não. Aí que está o touché: a geração pós-guerra é obrigada a encarar de frente a questão do nazismo por quase toda a vida: estudam a respeito exaustivamente na escola, tanto que tenho dó; o tema está nos noticiários, nas conversas, nos muros, em museus e memoriais, e, como disse, nas Stolpersteine  Ao tropeçar em uma delas, não tem como fazer de conta que nada de grave aconteceu no passado recente, como presenciamos cada vez mais no Brasil.

Pergunto-me como seria para a sociedade brasileira se houvessem formas mais criativas e sistemáticas de lhes fazer refletir sobre, entre outras tantas questões, o paradeiro dos desaparecidos durante a ditadura? Imagine que houvesse entre nós iniciativa parecida às Stolpersteine onde pudéssemos conhecer o nome e o lugar onde os Amarildos do Gople de 64 foram vistos pela última vez?

Na Alemanha, os mais lúcidos não se atrevem a chamar o ato de Hitler de revolução. Mesmo porque sabe que sofrerá as consequências. É inimaginável assistir em rede nacional alemã uma apologia à ditadura, por exemplo. Suponho que haveria, no mínimo, forte apelo à renúncia do seu interlocutor. E há multas bem salgadas: os alemães não deixam passar barato porque sabem que tipo de instinto estariam alimentando caso fingissem que nada viram, nada ouviram... mais uma vez. 

Mas o que diabos isso tem a ver com o Brasil?

O que isso diz sobre a gente?

O óbvio: que nos falta memória. Ou melhor: meios eficazes de lidar com a constante perda de memória. Porque sofrer de memória, todos sofrem. Os Estados Unidos não parecem ter muita consciência da sua dívida histórica com os negros do seu país e só recentemente a Alemanha reconheceu a sua parte no genocídio na Namíbia (com certas resistência e ressalvas, claro)... a diferença é como cada um enfrenta seus monstros. Ou será que não deveríamos ter vergonha da atuação do Brasil na guerra com o Paraguai? O episódio está lá, contado nos livros, mas de forma tão superficial que não mostra como quase varremos um país do mapa. Tampouco trata com a devida honestidade o ainda corrente genocídio indígena ou como a escravidão explica o genocídio da população jovem e negra das favelas brasileiras.

Aliás, em resposta a esta matéria da BBC, é evidente que o Brasil precisa mudar o modo como lida com a memória da escravidão. Está certo que a Unesco aceitou a candidatura do Cais do Valongo a Patrimônio da Humanidade (leia notícia aqui), mas isso é o suficiente? É neste mesmo local onde se encontra o Museu do Amanhã,  aliás, nome bastante simbólico: olhar para o futuro, não para o passado.  Em outras palavras, lentamente dissipar de nossa memória que o Valongo foi o maior porto de entrada de escravos de todo o continente americano enquanto se suplanta no lugar um edifício muito, mas muito bonito que guia nosso olhar para outra direção... Ora, mas uma das facetas da beleza não é justamente nos distrair e desviar a atenção do que nos seria teoricamente mais importante? Por enquanto, essa parte da história fica à espera de ser devidamente resgatada, como os escravos de Tromelin.

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