Dois dos primeiros estrangeiros a pisar o pé em Brasília foram Simone de Beauvoir and Jean-Paul Sartre no fim dos anos 1960, pouco depois da inauguração da nova capital do Brasil.
Madame de Beauvoir disse que Brasília era uma cidade no meio do deserto. Suas palavras sobre a cidade futurística foram "Estou deixando Brasília com o maior prazer... esta cidade nunca terá alma, coração, carne ou sangue!"
Este tipo de declaração não é inesperado, mas curioso. À época da visita de Madame de Beauvoir, só era possível chegar à Brasília de avião ou a cavalo. Não havia habitantes nem estradas. O que Madame de Beauvoir esperava de uma cidade planejada que acabara de ser erguida?
O que mais me surpreende é que, como uma existencialista, Madame de Beauvoir acreditava que a existência precede a essência; daí uma principais frases do movimento feminista creditada à ela: “Não se nasce mulher, torna-se mulher". Ora, o mesmo não é verdade para uma cidade minuciosamente arquitetada como Brasília? Lucio Costa já dizia que "[d]eixem Brasília crescer tal como foi concebida, como deve ser, – derramada, serena, bela e única”
Com efeito, o tempo mostrou que Madame de Beauvoir - pelo menos no que toca à falta de alma, sangue, carne e coração em Brasília.
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| Simone de Beauvoir and Jean-Paul Sartre em um encontro com o presidente fundador da capital Juscelino Kubitschek. Brasilia, Brasil, 1960. Foto: Agência Nacional / Arquivo Nacional. |
Brasília, ironicamente, cresceu à semelhança dos preceitos existencialistas:
Em geral, para os existencialistas, ninguém nasce sendo alguma coisa: tudo que nós somos é o resultado de nossas escolhas, à medida que construímos a nós mesmos utilizando nossos próprios recursos e aqueles que a sociedade nos oferece. Não apenas criamos nossos valores, mas a nós mesmos. Fonte
A capital é hoje o lar de muitos brasileiros e estrangeiros, serve de palco para inúmeros eventos culturais, intervenções artísticas e de movimentos locais que querem ocupar os espaços esquecidos ou abandonados pelo governo como forma de retomar a cidade pela própria população. Se isto não é uma conjunção entre alma, sangue, carne e coração, então não sei o que move o pulsar humano em cidades como Roma e Paris, aqueles que Madame de Beauvoir usou como ideais em relação à Brasília.
De fato, não sejamos paternalistas - coisa que a Madame odiava. De fato, devemos concordar com de Beauvoir e Sartre que a organização do espaço urbano da capital já se revelava grosseiramente injusta e excludente - uma vez que fora inicialmente concebida para abrigar políticos, autoridades, servidores públicos e suas respectivas famílias. Em outras palavras, não havia espaço para as populações de classes mais baixas que vieram de outros Estados para ajudar a construir a capital. A maioria viera de cidades pobres e não podia pagar para morar no seleto Plano Piloto - ou sequer a viagem de volta para casa.
Com o passar dos anos, este conceito discriminatório intríseco à história original da capital empurrou as classes mais desfavorecidas para os arredores de Brasília, que se tornaram as chamadas "cidades satélites". Ou como têm sido denominadas mais recentemente, os "bairros da metrópole" - o que, na verdade, são.
Em todo caso, isto é assunto para outra postagem.
Para finalizar esta, gostaria apenas que de Beauvoir e Sartre pudessem ver como está Brasília hoje. Apesar de que, com certerza, reafirmariam considerar o plano urbanístico segregador, talvez enxergassem a cidade viva, pulsante e inquieta ressurgida das cinzas - ou melhor, das areas do deserto desse cerrado sem fim.
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| Simone de Beauvoir, Oscar Niemeyer, Jean-Paul Sartre, Jorge Amado e seu irmão James. Brasilia, Brasil, 1960. Autoria da foto desconhecida. |
Para conferir mais fotos de Simone de Beauvoir eJean-Paul Sartre no Brasil, acesse http://www.flickriver.com/photos/casadejorgeamado/popular-interesting/.
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