Nutella, os alemães e o boicote



Como que um pote de Nutella terminou em uma série de causos sobre a cultura de boicote dos alemães? 

Bom, como você vai ver adiante, eu já tinha cogitado parar de consumir Nutella antes, independente de me causar mal diretamente. Embora há muito ciente das controvérsias do plantio de óleo de palma, extremamente danoso para o meio ambiente e que ameaça várias espécies de animais, como o orangotango, confesso que este nunca foi um motivo crucial para abandonar a guloseima. Este vídeo, por exemplo, sempre me dá arrepios - mas fica por isso mesmo: serve de conscientização... e só. Jamais fora suficiente para mudar radicalmente meu hábito de consumo.

Contraditório, não? Pois é. Apesar de zelar muito pelo meio ambiente, sabotar um produto como Nutella dada sua trajetória ofensiva em nenhum momento teve um apelo muito forte para mim. Mas isso vem mudando. Viver em meio à sociedade alemã, como você vai ver nos exemplos abaixo, onde as pessoas consistentemente boicotam  empresas que contrariam princípios básicos de humanidade ou ambientais, fez com que eu, aos poucos, passasse a optar por mais coerência entre minhas convicções e formas de consumo. É claro que ainda há um longo caminho a se percorrer. Estou agora em busca da coerência.

Mas chega de conversa e vamos aos exemplos. 

Boicote n.  1:

Em tempos de quarentena, providenciei um pote de Nutella. Poucos minutos depois de saborear três belas colheradas, meu estômago começou a reclamar com ruídos e cólicas, típicos de quando precisa digerir algum produto com lactose. Corri para ler os ingredientes do creme de avelã e qual não foi meu desgosto ao verificar que Nutella contém "Magermilchpulver", que é "leite desnatado" em alemão. Eis a palavra-chave para me convencer de uma vez por todas que deveria abrir mão do produto que me trazia felicidade nas horas de ansiedade, afinal, descobri ano passado que tenho alta intolerância a qualquer rastro de leite. Chegou a hora: a Nutella seria sacrificada. Se não pelo meio ambiente, então que fosse por onde o calo me aperta - pela minha saúde. 

Verdade seja dita, já há algum tempo eu vinha debatendo comigo mesma sobre o consumo de Nutella. Qual a coerência em defender as tribos da Amazônia ao mesmo tempo que ignorava as repercussões negativas sobre os produtores de cremes de avelã? No Brasil, percebo uma consciência crescente em relação à forma de lidar com diversos temas controversos da nossa sociedade - e são chamados de mimizentos. Mas aqui na Alemanha a pressão por coesão entre os princípios e atos adotados por um indivíduo é mais sólida. E somos lembrados o tempo todo.

Foi o que aconteceu durante meu estágio ano passado quando ofereci para meu supervisor uma barrinha de Nutella, a B-Ready. Muito educado, ele recusou. Como brasileira sem tento, ofereci uma outra vez, mais por distração do que por educação. Ele novamente rejeitou. Devo ter perguntado o porquê - quem é que recusa Nutella? Calmamente, ele retirou os óculos, entrelaçou os dedos e me olhou complacente, explicando com a mais absoluta serenidade: "porque Nutella tem óleo de palma; para produzir óleo de palma, são adotadas medidas prejudiciais ao meio ambiente, logo não consumo produtos que exploram o meio ambiente. É uma questão de princípio."

Toma, Janaina. Engoli meu B-Ready sozinha e a seco.

Boicote n. 2:

Em 2014, estava me preparando para ir às compras. Meu colega de apartamento perguntou se poderia ir comigo e em qual mercado pretendia ir. Respondi. Ele, então, recuou. 

- Nunca compro nesse mercado. Vou a outro.
- Por quê?
- Porque esse onde você quer ir explora mão de obra. Os funcionários trabalham uma carga horária escrava, são reaproveitados para várias funções para evitar contratar mais pessoal e ganham pouco. Então, não vou compactuar com este mercado. Ninguém consegue trabalhar lá muito tempo, porque é muita exploração. Sugiro outros mercados, onde os produtos são mais caros, mas as condições de trabalho proporcionalmente mais dignas.

Não deixei de ir totalmente ao mercado, afinal com meu dinheiro não poderia bancar sempre os mercados mais caros e justos, porém não deixei de observar a verdade das suas palavras no tal mercado. De fato, os funcionários aparentam mal humorados, sob estresse e pressão, pois pudera: correm o tempo todo de um lado para o outro entre reabastecer prateleiras, limpar e atender o caixa...

Boicote n. 3:

Ainda em 2014, estava ficando com um alemão. Em um desses encontros, ele comentou que gostava de iogurte com sabor de arroz doce. Guardei aquela informação. Quando fui ao mercado, comprei o tal iogurte para presenteá-lo no nosso próximo encontro. Qual não foi minha surpresa - para não dizer choque - diante da sua reação: 

- Que p**** é essa??!! - ele indagou, com o pote em mãos. 
- Iogurte, ué. Do que você gosta. Aí ó, arroz doce. - respondi.
- Eu não compro nada dessa marca - seu tom de voz ecoou repleto de desprezo e, com a rapidez de quem se livra de uma mina prestes a explodir, arrancou o produto das minhas mãos e lançou-o na lixeira.

Diante do meu ar visível de noção zero sobre o que estava acontecendo, ele esclareceu suas razões:

- O dono da empresa que fabrica esta marca é nazista. Aliás, ele financia partidos e grupos nazistos. E eu não compro de nazistas. Nem você deveria.

Pois bem, nunca mais comprei produtos dessa marca. Mesmo porque não sou nenhum um pouco fã de arroz doce.

Boicote n. 4:

Aqui na Alemanha tem várias lojas de departamento com roupas maravilhosas - bom, na maioria das vezes - com preços bastante em conta. Você já deve saber onde isso vai dar. Exato. Conheço alemães que se recusam a comprar nelas porque... bem, os produtos são baratos justamente por resultarem de mão de obra barata - senão escrava - de países asiáticos. 

Já percebi, contudo, que algumas dessas lojas são menos boicotadas do que outras segundo a régua moral do consumo sustentável alemão. Ou seja, muitos continuam a comprar nelas. Uma em particular, porém, não tem tanta sorte: é associada irremediavelmente à exploração de trabalho escravo e, portanto, indigna de qualquer centavo de muitos alemães que conheço. Para se ter uma ideia do tamanho da aversão, muitos sequer pisam na loja, mesmo que seja apenas para acompanhar outra pessoa. Aparentemente, a simples presença no estabelecimento é sinônimo de compactuar com a política nefasta da empresa - e não se deve dar pano pra manga. De fato, das vezes em que fui à tal loja, observei que havia mais estrangeiros do que alemães.

Fica a dica sobre o que fazer com Madero e Havan.

Boicote n. 5:

Um caso mais recente e menos pessoal é o da Adidas que, em meio à crise do corona vírus, teve o disparate de anunciar que ia deixar de pagar aluguel de suas lojas pelo mundo enquanto durasse a pandemia. Sem demora, os alemães inundaram a internet (se não fosse a quarentena, certamente também iriam às ruas) absolutamente revoltados com o fato de uma empresa como Adidas, que faturou bagatela de 2 bilhões de dólares em 2019, atrever-se não só a pensar, mas chegar a declarar oficialmente que deixaria outras empresas na mão nesses tempos de adversidade para todos. Pois que não ousasse - os alemães avisaram -, caso contrário iria ter boicote.

Membros do governo também se posicionaram criticamente frente à decisão. É o caso do Ministro de Finanças, Olaf Scholz, e da Ministra da Justiça, Christine Lambrecht, ambos do SPD (centro-esquerda), que classificaram a intenção de grandes varejistas em congelar o pagamento de aluguel como "irritante" e "indecente e inaceitável", respectivamente.

Não deu outra. A empresa de três listras emplacou o seu melhor relações públicas para se retratar e anunciar que foi uma decisão equivocada e vão continuar pagando os alugueis.

Talvez seja um pouco tarde demais. Aposto que vários alemães tomaram ranço.

E alemão com ranço, meus amigos e minhas amigas, significa boicote.


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